A guilt dos guilty pleasure

Rafael Escobar
5 min readJul 16, 2019

Existe essa coisa que alguns chamam de “guilty pleasure”, e outros de “prazer culpado”, que nada mais é, segundo as definições populares, que algo que a gente tem vergonha de gostar; e aí vêm exemplos como o estudante de violão clássico que é fã de Detonautas mas não fala isso pra ninguém, ou o coordenador de grupo de estudos em literatura que vai na livraria comprar o box do Cinquenta tons de cinza e entrega o negócio no caixa todo ressabiado, como se tivesse comprando um tijolo de 2kg de cocaína. Enfim, detesto essa noção. Acho que é só mais uma imposição do meio que prejudica a liberdade e a tranquilidade de todo mundo. Já vi pessoas que não conseguiam dizer que gostavam de algo sem trazer mil ressalvas sobre como sabiam que era ruim e malfeito e problemático e que não era nada maravilhoso e que era só pra se divertir só pra dançar pra relaxar só pra ENTRETENIMENTO só pra sei lá o quê, explicando tanta coisa a um ponto que dizer que gostam de ver novela fica quase igual a dizer que roubaram cinco reais de uma senhora na fila do mercadinho. Isso é algo que exige explicações; o teu gosto musical, não. O lance do “guilty pleasure” é que é um conflito interno dos indivíduos, um autopreconceito, provocado por nichos muito mais específicos do que os outros clássicos preconceitos e problemas sociais super consolidados no treco inteiro. No mínimo uma quantidade próxima de 673 bilhões de seres humanos no Brasil assistem novela, e se eles disserem pra outras pessoas do seus contextos que eles assistem novela, e começarem a enfileirar mil motivos pra isso, os outros vão cagar e andar e vão dizer que também assistem e que nem entendem por que tu tá dando explicações. Aliás, eu e com certeza muitas outras pessoas que existem na tua vida, todos nós estamos absolutamente cagando pro que tu gosta ou deixa de gostar; nós só queremo curtir nossos bagulho em paz, mas tamo sabendo que existem essas que vão querer tirar uma onda quando tu disser que gosta de tal ou tal coisa. É óbvio que as hierarquias sociais e culturais e filhadaputais são as coisas que coordenam a questão “o que pode ser considerado guilty pleasure?”, porque, sabemos, dificilmente Dostoiévski vai ser encarado dessa maneira; mas o óbvio é justamente isso: Dostoiévski só não vai ser considerado um guilty pleasure no meio em que todo mundo sabe quem foi Dostoiévski e possivelmente já leu alguma coisa escrita pelo indivíduo; sabe que meio é esse? O TEU, SEU COITADO QUE TEM VERGONHA DE GOSTAR DE FRESNO. A culpa não é tua, eu sei, é da chatice entranhada no coração de todo mundo. Os guilty pleasures são muito variáveis de acordo com os grupos, já que as hierarquias não se restringem a grandes nichos, e, por exemplo, de forma mais específica, dentro do meio EMOCORE é com certeza muito mais “nobre” gostar de algo como American Football do que de algo como Simple Plan (“isso nem é emocore”, vão dizer os chorão que fingem que nunca se entregaram pra um “I’m sooooorry / I can’t be peeeeeerfeeect”). Acho que a raiz de boa parte do problema tá em não conseguir entender que tem várias maneiras de gostar de algo, a partir de critérios diferentes, de pensamentos ou de sensações diferentes, ou de critério nenhum, mas que no fundo tudo é GOSTAR, e não existe nenhum tipo de “gostar” que imponha mais justificativas do que outros. Eu, de vez em quando, nas minhas conversas, percebo que quando falo da Hilda Hilst, por exemplo, digo que acho “maravilhoso” e ponto final, não sinto que preciso dar qualquer tipo de informação a mais; mas se eu falo do Stephen King, tenho que dizer que marcou muito minha infância e que então tenho muito carinho pelos livros dele, e que sei lá o que mais, como se eu soubesse que o meu interlocutor poderia me julgar porque eu tô enaltecendo um best-seller americano escrito por uma criatura que publica 45 livros por mês desde os anos 70, entre eles o de um carro que tem vida própria e mata pessoas etc. (aliás, se é pra falar de ideias bizarras do Stephen King, eu sempre prefiro dar o exemplo do conto “A máquina de passar roupa”, presente no livro “Sombras da noite”, que é, como tudo indica, um conto sobre uma máquina de passar roupa que mata pessoas). Mais uma vez, o porquê disso? Porque com frequência eu tô conversando com pessoas (incluindo eu mesmo, falando sozinho, ou pensando) que, além de terem seus clássicos preconceitos comuns (em maiores ou menores níveis), têm também esse tipo de preconceito aí, que é o preconceito contra quem acha sensacional uma obra de arte que não é extremamente bela e profunda e que não manifesta a GRANDIOSIDADE DAS REFLEXÕES E DAS REVOLUÇÕES QUE A “VERDADEIRA ARTE” É CAPAZ DE PROPORCIONAR. Pra mim, tudo se resume no final àquele pensamento de “eu só gosto MESMO do que é BOM” (segundo um grupo muito específico de critérios, que são os mais refinados), o resto é guilty pleasure ou consumo irônico (outra questão talvez um pouco mais complicada). Por isso eu gosto de fazer o experimento de apenas declarar o meu apreço por algo que eu sei que faria outros ficarem no mínimo um pouco surpresos, sem sair justificando nada, só pra ver a situação que surge; assim como também gosto de, se for necessário, fazer uma ANÁLISE bem séria e dedicada pra explicar por que acho que tal obra é muito boa, sem ficar expondo uma suposta noção de que tô forçando a barra ou coisa assim (por realmente não pensar que tô). Normalmente, em momentos assim, surge outro problema: o fato de muitos considerarem que a análise de uma obra só pode ter um “valor de verdade” se várias características dela evidenciarem que aquela interpretação era uma intenção real do seu autor, mas aí, pra mim, já descamba pra outro nível de chatice e fechamento cabeçal que não merece nem atenção. Já vimos por aí criaturas super espertas usando as mesmas obras pra exemplificar quinhentas coisas diferentes, e isso acontece porque é óbvio que as interpretações são inesgotáveis; acho meio bizarro que tenha tanta gente que discorda disso. Por exemplo, sobre o atual trágico momento que esse país BRASIL vive, já vimos mil gentes usando o livro 1984, do George Orwell (e outras distopias) pra traçar paralelos com a bosta generalizada que tá acontecendo na realidade, mas eu ainda não tinha visto alguém usando O SENHOR DOS ANÉIS pra fazer a mesma coisa, que foi o que o Cláudio Prado fez no vídeo bem tri que eu vou colocar ali embaixo nos comentários. Gosto de tentar ter respeito pelos meus próprios gostos e ver as artes que as pessoas fazem de vários pontos diferentes; pra mim é importante.

(Agora, no fim de todas essas coisas que eu escrevo e posto na internet, vou terminar lembrando que tenho dois livros publicados e que dá pra falar direto comigo pra comprar qualquer um deles. Eu teria o maior prazer em ser o “guilty pleasure” de alguém.)

O vídeo mencionado: https://youtu.be/_Ykl4v0bY20

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